Judaísmo e ciência: o mito de que a ciência e a religião não podem coexistir

Beny Rubinstein
9 min readFeb 2, 2022

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Desde criança, a ciência me fascina. Filho de pai médico, e amante da física, matemática, química e biologia — li e reli obras e biografias de grandes cientistas como Albert Einstein e Stephen Hawking (autor de “Uma Breve História do Tempo”, que é um resumo para leigos do que a ciência já havia descoberto sobre o espaço e o tempo até 1988).

Oriundo de uma família judaica — que ainda que não praticante 100% do judaísmo “ortodoxo”, traz em si grandes valores, tradições e costumes judaicos. Meus avós paternos, ainda que tenham falecido quando eu tinha três anos de idade, vieram de famílias bastante tradicionais e religiosas: meu avô paterno, Avraham, era chazzan e muitas vezes tocava o shofar no Yom Kippur, após 25 horas de jejum. Seu pai vivia em uma vila remota na antiga União Soviética onde, na ausência de um rabino, vários judeus dos arredores viajavam quilômetros para receber seu aconselhamento em questões relacionadas à prática do judaísmo. Minha avó Golda, nascida em Vilna (ou Vilnius, cuja influência judaica levou ao apelido de “Jerusalém da Lituânia” antes da Segunda Guerra Mundial), lecionou o idioma Yddish a duas gerações de judeus no Rio de Janeiro.

Como podem perceber, vivi por muitos anos em uma dualidade: enquanto vários afirmavam que cientistas tão “racionais” e avançados em seus domínios de conhecimento se manifestaram como “ateus” — erradicando qualquer possibilidade de reconciliação entre a teologia e as religiões baseados no Velho Testamento (a nossa Torá sagrada, na qual não somente judeus, mas também cristãos e muçulmanos acreditam, apesar de terem posteriormente adicionados outros livros e profetas baseados em suas crenças). Como acreditar em um D’us, o Criador do Universo, após a Teoria do Big Bang? Recém ingresso no mundo da ciência (recebi uma bolsa de estudos para estudar Processamento de Dados no Instituto de Tecnológico ORT Brasil ao 13 anos, pouco depois do meu Bar Mitzvah), comecei a sentir-me inadequado falando sobre D’us e sobre as Leis Judaicas, ainda mais ao ingressar na Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro, onde estudei Cristianismo, Ética Cristã, O Homem e o Fenômeno Religioso além da Cálculo I, II, III e IV, Química e diversas cursos no mundo das ciências. Como poderia um engenheiro que estudou Física por tantos anos acreditar em “contos e fábulas” da Bíblia? “Você perdeu o senso comum, tornou-se ‘irracional’? Ciência é razão, algo que os intelectuais comprovam; religião é ficção para tolos acreditarem, pura fantasia” — diziam-me muitos. Diante de tal paradigma, me parece que eu teria três opções: a) Tornar-me um rabino e abandonar uma carreira promissora no mundo das Ciências; b) Abandonar quaisquer crenças religiosas que eu tinha para tornar-me um cientista renomado; ou c) Seguir acreditando em D’us e estudando judaísmo quase que secretamente, pois melhor não mencionar esta faceta de sua vida na comunidade científica, para não prejudicar sua reputação e carreira.

Pode parecer um pouco extrema a colocação acima; porém era desta forma que evoluía minha mente há cerca de 20 anos. Como dizia um colega nos Estados Unidos (em 1999 iniciei meu Mestrado em Administração de Negócios na Wharton School, na Filadélfia, e segui por mais 13 anos como executivo da Microsoft em Seattle): “Do you want to be right, or do you want to be happy?”. Essa pergunta transformou minha vida. Cansado de tantas “evidências” de que somente a Ciência pode trazer uma “real” felicidade: reconhecimento profissional, credibilidade como “pessoa sana e racional no mundo dos negócios”, longe daqueles ‘lunáticos’ ou ‘fanáticos’ como muitos chamavam aqueles que dedicaram anos de suas vidas para entenderem o verdadeiro significado da Torá sagrada, da Mishná (tradições orais) e da Guemará (que juntos compõem o Talmud, compilação de ensinamentos rabínicos pós-destruição do Segundo Templo).

Porém, há uma expressão em inglês que diz: “Se você acha que o custo da educação é alto, tente o custo da ignorância”. Ao dialogar com um rabino do Chabad em Seattle (onde inicialmente eu comparecia aos sábados apenas para saborear o delicioso schulent que sua esposa, aliás brasileira, preparava) — aprendi algo que me deixou extremamente curioso: ele me disse que, ainda que o princípio básico do judaísmo seja a crença em um D’us único, o Criador do Universo, pela lei judaica era possível obter uma espécie de “passe” para ser ateu. Oi?!? Mas não é o ateísmo ortogonal ao judaísmo, renunciando ao seu princípio mais básico e elementar? Sua resposta foi: “Bem, o processo de obtenção deste ‘passe’ — uma espécie de ‘certificado de kashrut’ para você ser ateu — requer o comprometimento deste judeu (ou judia) a dedicar-se primeiramente aos estudos aprofundados da Torá, pois a fim de negarmos algo com legitimidade é preciso primeiramente entender aquilo que decidimos negar”.

Deste dia em diante, me coloquei em um desafio pessoal: deixa-me entender o que exatamente diz o Judaísmo sobre todas aquelas questões que hoje, em minha educação tradicional, porém não aprofundada nos estudos da religião judaica, parecem não fazer qualquer sentido para um “engenheiro/cientista/homem de negócios” — e daí, quem sabe eu obterei a tal “liberdade” de decidir que sei o suficiente para negar aquilo que no momento não compreendia.

(Pausa para uma confissão: um amigo que acompanha meus artigos me havia comentado que eu “me escondia” atrás de diversas citações e não me expunha pessoalmente; creio que cumpri meu dever de relatar o background pessoal do artigo que agora vos apresento, e reservo-me agora ao direito de seguir citando exemplos de pessoas mais conhecidas e renomadas do que o vosso autor).

“Uma das grandes tragédias do nosso tempo é esta ideia que foi criada que a ciência e a religião têm que estar em guerra” — Dr. Francis Collins, ex-Diretor do National Institute of Health (NIH)

Vamos agora relacionar alguns dos mitos e crenças mais frequentes e seus contrapontos:

1) É preciso ser ateu para ser cientista. Uma pesquisa feita em 2005 sobre cientistas das melhores universidades de investigação descobriu que mais de 48% tinham uma afiliação religiosa e mais de 75% acreditam que as religiões transmitem importantes verdades[1]. Alguns cientistas — como Francis Collins, ex-diretor do National Human Genome Research Institute, e George Coyne, astrônomo e sacerdote — falaram claramente sobre a satisfação que encontram em ver o mundo tanto através da ciência como através da fé.

2) O judaísmo “ortodoxo” rejeita os avanços tecnológicos e novas descobertas científicas. Os avanços tecnológicos e novas descobertas científicas são bem recebidos pelo judaísmo. Isso de acordo com o rabino David Weitman, da Congregação Sefardi Paulista e diretor do centro judaico Beit Chabad Morumbi. Ele alerta, no entanto, que o bom senso deve prevalecer, com regras de ética e moral elevadas para que as novidades sejam utilizadas para o bem do ser humano (bem no início da Torá, nós temos a história de um descendente de Cain, que se chamava Tuval Cain — em hebraico, ‘melhor do que Cain’ — e foi o primeiro ferreiro. Ele poderia ter feito um garfo para comer, instrumentos de música e outros objetos para ajudar o nosso cotidiano; mas acabou fazendo armas). No caso dos alimentos modificados geneticamente, por exemplo, o rabino lembra que, de acordo com a religião, não há proibição de melhorar a comida do ser humano (obviamente os ingredientes têm de ser kasher). A tecnologia moderna facilitou o judaísmo, com novos sistemas de timer para serem utilizados no Shabat e máquinas que mantêm a comida quente.

3) Torna-se um judeu “ortodoxo” significa alienar-se ou renunciar a uma carreira — em especial no mundo científico ou político. Uma prova de que ciência e judaísmo combinam é a recente escolha de um judeu praticante, que guarda o Shabat (o senador Joseph Lieberman) para disputar a vice-presidência dos Estados Unidos. Aliás, eu tenho a honra e o privilégio de trabalhar com um judeu ortodoxo e hassídico que chefia a Faculdade de Medicina. O próprio “Rebbe” do Chabad Lubavitch estudou na renomada Universidade de Paris, conhecida como “Sorbonne[2].” Diversos rabinos “ortodoxos” contemporâneos destacaram-se pela combinação de seus profundos conhecimentos rabínicos e científicos, como o Rabino Dr. Abraham J. Twerski (z”l), que vinha de uma dinastia hassídica e tornou-se psiquiatra especializado em abuso de substâncias. Jonathan Henry Sacks (z”l) serviu como grão rabino das congregações judaicas unidas da Grã-Bretanha e da Commonwealth de 1991 a 2013; ele estudou em Oxford e concluiu seu doutorado no renomado Kings’ College de Londres. Possuía 14 títulos de Doutor Honoris Causa e foi condecorado pela Rainha Elizabeth II da Grã-bretanha como Cavaleiro.

[1] Ecklund, E.H., and C.P. Scheitle. 2007. Religion among academic scientists: Distinctions, disciplines, and demographics. Social Problems 54(2):289–307.

[2] In the Halls of the Sorbonne — Program One Hundred Sixty Nine — Living Torah — Video (chabad.org)

4) O judaísmo é baseado apenas na fé e não na Ciência. Para o povo judeu, a Torá — Escrita e Oral — não é apenas um livro de ética ou de história, mas principalmente a expressão da sabedoria e conhecimento divinos. O Zôhar, livro básico do misticismo judaico, descreve a Torá como a planta deste mundo, quando diz que “D’us olhou na Torá e criou o Universo”.

Desde a antiguidade, os sábios judeus demonstraram grande conhecimento das ciências naturais.

Consta nos livros sagrados que os sábios da Grécia Antiga adquiriram seus conhecimentos científicos e filosóficos dos profetas e sábios judeus. O próprio Aristóteles teve acesso aos escritos do rei Salomão, o mais sábio dos homens (Sêder HaDorot, ano 3385). Em vários momentos da história, eruditos judeus e rabinos foram confrontados com sábios das nações em matérias de ciência e conhecimento humano.

Vale também lembrar que, no judaísmo, é preciso saber de astronomia para fazer os cálculos do calendário; é preciso entender de biologia, para saber se os animais são kasher ou não. Grandes sábios, como Maimônides (Moses bem Maimon, o famoso Rambam), tornou-se um dos mais prolíficos estudiosos da Torá no século XII e era também um proeminente astrônomo e médico, além de rabino e filósofo.

Em resposta à citação de Albert Einstein, “D’us não joga dados com o universo”, disse Niels Bohr: “Einstein, não diga a D’us o que fazer”.

Albert Einstein era um físico clássico e acreditava que o universo operava em um conjunto de teorias fundamentais que descreve a natureza. Niels Bohr foi um dos primeiros e maiores físicos quânticos que acreditam que há limites para a precisão com que as quantidades podem ser conhecidas.

Einstein pensou que, dado o pleno conhecimento do estado atual, é possível prever todos os estados futuros. Isso é determinismo; nada é até o acaso. Einstein pensou que com dados suficientes, poderia-se, em essência, conhecer a mente de Deus.

Bohr pensou que esta não parece ser a maneira como o mundo funciona. O acaso pode desempenhar um papel. Mas ele entendeu que é absurdo pensar que alguém poderia conhecer a mente de Deus. — Ben Rothke

E então pessoal…será que conseguimos seguir acreditando que a ciência e o judaísmo podem coexistir? Aliás — eles já coexistem, basta nós entendermos melhor o judaísmo e saber que, ainda que por vezes eles pareçam contraditórios, há evidências suficientes de que resta a esperança de finalmente vencermos os “tabus” e conseguirmos seguir estudando e praticando o judaísmo com convicção, entendendo que nem tudo é explicável ou compreensível no judaísmo (e nem mesmo na ciência) — o que não invalida seus benefícios a nossas vidas e à humanidade. Quanto à pergunta que me foi feita durante a elaboração deste texto: “Qual é a relação ou contradição que há na criação do mundo? Devo acreditar no Homo Sapiens ou em Adão e Eva?” — fica para um próximo artigo. Carpe Diem!

Beny Rubinstein é Engenheiro de Computação pela PUC-RJ e M.B.A. pela Wharton School da University of Pennsylvania.

Ao longo de 2 décadas, vem se aprofundado nos estudos religiosos e espirituais em instituições como Beit Chabad, The Meaningful Life Center e Aish Ha’Tora — e espera um dia fazer um Doutorado ou PhD e seguir aprofundando seus estudos judaicos em Israel.

Para acessar algumas palestras, visite WWW.BenyRubinstein.com

Publicado na Revista nº 26 — Fevereiro/2022 — Revista Bras.il (bras-il.com)

24 de dezembro de 2009 no Muro das Lamentações em Jerusalém

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Beny Rubinstein

Founding Team Member of Microsoft Azure currently working on disrupting AI/ML through AI for Genetic Algorithms that builds AI. Startup investor and adviser.